Home Office e a Legislação Trabalhista


Mara está fazendo compras num supermercado e pretende terminar essa tarefa em trinta minutos. Em seguida ela vai à escola infantil, próxima a sua casa, para apanhar seu filho, de três anos de idade. Em casa, Mara trabalhará por mais duas ou três horas, colhendo mais algumas informações via Internet e redigindo uma matéria jornalística, que deverá enviar por e-mail, até o final do dia, à redação do jornal para o qual presta serviços. Mara é jornalista especializada em moda e escreve semanalmente para este jornal e também para uma revista deste segmento. Na sede da revista, ela tem à sua disposição uma mesa, com telefone, computador e toda estrutura necessária à realização do seu trabalho, mas ainda assim mantém o seu próprio escritório em casa, num cômodo destacado, onde organiza os seus arquivos e dispõe de uma mesa de trabalho; este é o ambiente onde costuma desenvolver os textos, no uso de seu note book, pelo menos três vezes por semana.

André é representante comercial, empregado de uma indústria de abrasivos e produtos químicos. Visita clientes e possíveis clientes, durante a semana, apresentando os produtos de sua empregadora às indústrias metalúrgicas, em diversas cidades do interior de São Paulo. Realizadas as visitas, remete relatórios de vendas e confirmações dos pedidos fechados, via email, à sede de sua contratante, na Capital, para onde se desloca, pessoalmente, apenas quando realizadas as reuniões mensais.

As situações descritas não são mais frutos recentes das inovações tecnológicas a que assistimos nos últimos anos. Já é bastante comum a prestação de serviços pessoais do trabalhador em sua própria residência, senão em qualquer outro local de sua conveniência, mas distante do próprio estabelecimento de seu contratante.

  O trabalho realizado a distância, nos casos acima, assim como os mais diversos exemplos imagináveis, pode ou não se estabelecer como uma verdadeira rotina diária do trabalhador, seja em cumprimento de uma obrigação regida por subordinação, em verdadeiro contrato de emprego, seja na realização de suas tarefas de profissional autônomo, que oferece seus serviços, com liberdade, a diferentes clientes.

  Há casos em que a contratação, mesmo por vínculo de emprego, se estabelece exclusivamente para a prestação de serviços na própria residência do trabalhador, ou em qualquer local de seu interesse, mas sem a necessidade de seu comparecimento a localidade determinada pela empresa contratante.  A prestação dos serviços se realiza nessas situações porque o objetivo do trabalho contratado não é o de sujeição contínua da força de trabalho pessoal do prestador ao poder de comando do tomador dos serviços. O trabalhador contratado oferece o seu serviço a distância, no uso dos mais diversos recursos tecnológicos, e entrega, na maioria das vezes, um trabalho intelectual ou técnico, resultado de sua capacidade e formação pessoal, atendendo perfeitamente à necessidade do empregador.

A prestação de serviços a distância, sem o próprio comparecimento do prestador ao estabelecimento de quem o contrata, não é um dado que, por si, descaracterize o tradicional vínculo de emprego. Se o trabalho realizado atende às necessidades permanentes do tomador e é por este último dirigido e fiscalizado, em decorrência do traço de subordinação que as partes tenham pactuado, tácita ou expressamente, nessa atividade subsiste um típico contrato de trabalho.

  A nossa legislação trabalhista assegura os mesmos direitos ao empregado que realiza as suas tarefas a distância, desde que preservados, naturalmente, os traços caracterizadores do vínculo empregatício.  Assim, já dizia o artigo 6º da Consolidação das Leis do Trabalho, que “não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador e o executado no domicílio do empregado, desde que esteja caracterizada a relação de emprego”.

Não é por acaso que este dispositivo recebeu, recentemente, nova redação, ao final do ano de 2011. A intenção do legislador foi a de estabelecer, mais expressamente, a equivalência entre os efeitos jurídicos da subordinação exercida por meios telemáticos e informatizados àquela exercida por meios pessoais e diretos.

Desde a alteração determinada pela Lei 12.551/11, o artigo 6º da CLT acrescenta ao seu texto o trabalho “realizado a distância”: “não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego”.

A nova redação acresceu ao dispositivo o parágrafo único, tornando inequívoca a possibilidade de a subordinação se caracterizar também pelo uso dos equipamentos mais modernos de comunicação: “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.

A alteração do texto legal tem dado margem a interpretações tendentes, por exemplo, a configurar o controle de jornada e a prestação de horas extras pelo simples uso de comunicações via e-mail ou celular, inclusive após o expediente normal de trabalho.

  O alcance que vem sendo atribuído à recente alteração legal não nos parece razoável. A alteração do artigo 6º da CLT, a nosso ver, apenas aperfeiçoa o texto original, para reconhecer a possibilidade de o trabalho a distância – amparado ou não por recursos tecnológicos de comunicação – configurar-se como contrato típico de emprego, desde que, naturalmente, atendidos os requisitos que o caracterizam como tal.

  Esta era, aliás, a justificativa do Projeto de Lei 3129/2004, quando proposto pelo Deputado Eduardo Valverde (PT/RO). Transcrevemos: “A revolução tecnológica e as transformações do mundo do trabalho, exigem permanentes transformações da ordem jurídica com o intuito de apreender a realidade mutável. O tradicional comando direto entre o empregador ou seu preposto e o empregado, hoje sede lugar, ao comando a distância, mediante o uso de meios telemáticos, em que o empregado sequer sabe quem é o emissor da ordem de comando e controle. O Tele-Trabalho é realidade para muitos trabalhadores, sem que a distância e o desconhecimento do emissor da ordem de comando e supervisão, retire ou diminua a subordinação jurídica da relação de trabalho.”

A alteração da redação do artigo 6º da CLT não se confunde ao que nos parece, com uma verdadeira modificação de entendimento sobre a caracterização do controle de horário, por meio de emails, telefones celulares, palms, etc. Esses recursos tecnológicos já ofereciam, desde sempre, a possibilidade de controle indireto da jornada do trabalhador que se ativa em local diverso do estabelecimento de seu contratante.

  O que não se pode concluir do texto legal é que a simples utilização desses recursos tecnológicos redunde no trabalho subordinado e de jornada monitorada.  A análise do caso concreto é que permitirá a constatação do controle de jornada – como elemento de subordinação, típico da relação de emprego – ou simplesmente o uso de um meio de comunicação.

Mesmo que configurada a relação de emprego, também remanesce a possibilidade de o empregado utilizar esses meios tecnológicos sem verdadeira fiscalização de sua jornada de trabalho. Nesse sentido, não é demais relembrar que a mesma CLT mantém a disposição do artigo 62, inciso I, para excluir a possibilidade de pagamento de horas extras aos empregados que exerçam atividade externa, se esta atividade for incompatível com a fixação de horário de trabalho.

A atual redação do artigo 6º da CLT vem, assim, atualizar o texto anterior, para reafirmar que o trabalho a distância também pode assumir a natureza específica de contrato de trabalho, “desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego”, conforme a disposição original do artigo, assim mantida. 

O artigo 83 da CLT é outro dado de que a lei trabalhista já não descuida, há muito tempo, do empregado em domicílio, que exerce, portanto, uma forma de trabalho a distância: “é devido o salário mínimo ao trabalhador em domicílio, considerado este como o executado na habitação do empregado ou em oficina de família, por conta de empregador que o remunere”.

A tutela da legislação trabalhista, para esses casos, tem o objetivo de evitar a exclusão do trabalhador que realize suas atividades em sua própria residência ou outro local de seu interesse. O legislador reconhece, com isso, que o trabalho oferecido em endereço diverso do estabelecimento do contratante pode, ainda assim, conservar os elementos caracterizadores do vínculo de emprego. Pode-se imaginar que o empregador, por força de algumas particularidades dos serviços prestados pessoalmente pelo empregado, não veja a necessidade de mantê-lo sob seus olhos em tempo integral, dentro de seu próprio estabelecimento, preferindo exercer remotamente o seu poder de direção e fiscalização do trabalho. Nessa hipótese, a dedicação do empregado, mesmo que dentro de sua própria casa, não justifica que este trabalhador se encontre à margem da proteção assegurada pela legislação trabalhista.

  As disposições referidas estão de acordo com a realidade dos instrumentos de trabalho de que nos servimos, e evitam que a tutela legal assegurada ao trabalho subordinado seja simplesmente frustrada por força do uso de recursos tecnológicos mais modernos.

É uma constatação inegável o fato de que o desenvolvimento de recursos tecnológicos e a realidade do mundo globalizado trouxeram modificações da estruturação produtiva dos mais diversos setores de bens e serviços. Desde o rompimento com o conceito tradicional de produção taylorista-fordista, a partir de década de 80, valoriza-se a maior flexibilidade na organização do trabalho, num ambiente globalizado de avanço tecnológico e expansão de pequenas empresas.

O uso desses recursos tem se intensificado, desde então, nas relações de trabalho. Fala-se em uma III Revolução Industrial, que resulta da soma das comunicações e processamento de dados, via sistemas, com as já avançadas ciências aplicadas à produção e aos serviços em geral.

  As nossas atividades norteiam-se por um conceito de “sociedade da informação” .  A ideia presente é a de que o armazenamento e o uso da informação induzem à criação de conhecimento e à satisfação das necessidades sociais, econômicas e pessoais.

  A atividade produtiva, em seu sentido mais abrangente, está vinculada às possibilidades e às exigências do próprio ambiente de desenvolvimento tecnológico.  É pertinente a observação de Pedro Proscurcin, sobre a vinculação do trabalho a esse desenvolvimento. O autor toma um conceito de Hanna Arendt, segundo o qual a vita activa consiste em coisas produzidas pelas atividades do homem, as quais, por sua vez, terminam por condicionar os próprios autores dessa obra humana. Com esse paralelo Proscursin observa o quanto ganharam influência na vida social os avanços da tecnologia, “que condicionam de forma arrebatadora o mundo do trabalho”.

Assim, não obstante se exija o esforço de atualização da lei trabalhista, na tutela dos direitos do trabalhador subordinado, sabe-se que a evolução das relações de trabalho evidenciam também as situações que não mais se adéquam ao modelo clássico de relação de emprego.

  Condicionada pelo desenvolvimento tecnológico, a dinâmica das relações de trabalho também tem exigido, cada vez mais, o aperfeiçoamento de outras formas de prestação de serviços que, não raramente – não obstante se realizem com a pessoalidade do trabalhador, em atendimento de uma necessidade permanente do contratante – não mais se compatibilizam com o tradicional vínculo de emprego.

O desenvolvimento de outras formas de trabalho, já não mais compatíveis com esse modelo, é uma realidade observada mundialmente, e exige a tutela legal dos interesses do prestador que, muitas vezes sem amparo nas disposições asseguradas ao próprio empregado, vê-se fragilizado em posição intermediária, entre o trabalhador subordinado e o profissional autônomo.

A doutrina italiana desenvolveu o conceito da chamada parassubordinação, que contempla diferentes relações de trabalho, de natureza contínua, nas quais o trabalhador se dedique a atividades voltadas às necessidades organizacionais do tomador dos serviços, em cumprimento de obrigações contratuais, e visando a colaborar com os fins do empreendimento, como observa Otávio Pinto e Silva.

A denominação se refere a diversas relações jurídicas “para além” do conceito de subordinação, que tenham como ponto em comum as características acima. As referidas relações recebem da própria legislação italiana, senão dos contratos coletivos, determinadas medidas de proteção.

Também as lides decorrentes desse tipo de relação de trabalho, na Itália, submetem-se aos mesmos trâmites processuais assegurados aos litígios decorrentes da própria relação de emprego, como critério de proteção do trabalhador.

  Citando Giuseppe Ferraro, Otavio Pinto e Silva aponta o elemento de conexão entre as relações de trabalho parassubordinado: “um vínculo de dependência substancial e de disparidade contratual que se estabelece entre o prestador de serviços e o sujeito que usufrui dessa prestação”. A esse conceito acrescenta a observação de que o vínculo de dependência, por ser semelhante àquele que une o empregado ao empregador, justifica as garantias compensatórias equivalentes.

O trabalho parassubordinado diferencia-se da típica subordinação, mas ultrapassa, por outro lado, o conceito de trabalho autônomo, em que a obrigação assumida é simplesmente a de produzir algum resultado, extinguindo-se no momento da satisfação do interesse do tomador do serviço. O traço característico da parassubordinação é o de que a prestação dos serviços, embora não se sujeite à dependência e à direção do contratante, insere-se na sua organização.

Nas palavras do autor, o trabalhador, na parassubordinação, “assume a obrigação de atingir resultados consecutivos, coordenados entre si e relacionados a interesses mais amplos do contratante, interesses que não estão limitados aos que derivam de cada prestação individualmente considerada.“  

A ideia central desse tipo de relação de trabalho está na coordenação da atividade pelo contratante, com uma medida de controle, mas que não atinge a própria configuração do trabalho subordinado.  Enquanto na típica subordinação a atividade é prometida pelo trabalhador tendo em vista um programa, consensualmente definido, no trabalho parassubordinado o trabalhador não promete a sua atividade pessoal para o desenvolvimento de qualquer objetivo pretendido pelo tomado. O prestador oferece serviços de um tipo específico de atividade, necessária aos fins do tomador, e com ele programada.

  O conceito de coordenação vem associado à ideia de ordenar juntos, situação em que as partes contratantes propõem medidas com um objetivo comum. Aí a parassubordinação se diferencia do trabalho autônomo, em que se realiza o serviço, com o objetivo de entregar, ao tomador, o resultado contratado. Na coordenação, mencionada pela doutrina italiana, os níveis se unem, a ponto de o prestador e o tomador dos serviços “ordenarem juntos” o trabalho, de acordo com a dinâmica da necessidade de seu destinatário, com eventuais alterações do programa contratado, ao longo da prestação. 

Por outro lado, nesta relação de trabalho, o prestador pode, eventualmente, determinar as modalidades, o lugar e o tempo de cumprimento da atividade contratada, sem subordinar-se ao poder diretivo do contratante, o que o diferencia do próprio empregado, que permanece à espera de ordens do empregador, disponibilizando sua força de trabalho.

São exemplos da chamada parassubordinação, naquele país, contrato de agência; representação comercial; relações de colaboração, com a inclusão de profissionais liberais, se a prestação apresenta as características mencionadas.

  Vê-se, da descrição dessa relação de trabalho, que o chamado home office, ou simplesmente teletrabalho, ou, mais genericamente, o trabalho a distância, também pode assim se estabelecer, diferenciando-se do contrato típico de emprego.

A prestação do trabalho a distância, qualquer que seja o nome que se lhe atribua, apenas assumirá as verdadeiras feições de contrato de trabalho quando se realizar com os elementos que assim o caracterizam.

O manuseio de recursos tecnológicos é praticamente inerente ao trabalho a distância – seja ele por vínculo de emprego ou não – pois que se constitui na própria condição que viabiliza o exercício da atividade sem a permanência do trabalhador no estabelecimento de quem o contrata. A comunicação entre os contratantes faz-se possível em razão do uso desses recursos, sem que se faça necessário o contato pessoal entre contratante e contratado.

É natural desse tipo de trabalho, portanto, a condição de que o poder hierárquico do contratante não se exercite pelas formas tradicionais, na presença física das partes. A configuração do verdadeiro vínculo de emprego depende, no caso concreto, de verificar-se ou não o exercício da subordinação, mesmo que a distância, no uso dos próprios instrumentos tecnológicos disponíveis.   É essencial à caracterização do vínculo de emprego, que se constate a efetiva fiscalização e controle, por parte do tomador, assim como exercício de seu poder disciplinar, condições que podem se estabelecer remotamente, a exemplo do eventual monitoramento dos horários, estabelecimento de instruções obrigatórias, controle de produção, etc.

O que não se pode ignorar é que, por força da própria distância existente entre as partes, frequentemente o trabalho a distância se estabelece também sem traços do vínculo de emprego. Assim é que o conceito italiano de parassubordinação também contempla o teletrabalho, atividade que, já em 1999, representava seis por cento da força de trabalho europeia e mais de 12% nos Estados Unidos.

A atividade não é apenas um fruto das inovações tecnológicas, mas também da reestruturação produtiva e do desenvolvimento de novas formas de organização de trabalho.

1 PROSCURCIN, Pedro. Do contrato de trabalho ao contrato de atividade. São Paulo: LTr. 2003, p. 68

2 GUERRA, Amadeu – A privacidade no local de trabalho. Coimbra: Almedina, 2004, p.9.,apud Ana Francisca M. de Souza Sanden. O que trouxe a Internet para o Direito do Trabalho(INT) Anotações sobre novos problemas com base em decisões judiciais. 

3 ARENTD, Hanna. A condição humana. Pp. 15 a 77. São Paulo e Rio de Janeiro: Forense Universitária – Salamandra – Ed. da Universidade de São Paulo, 1991.

4 Obra citada. p. 336    

 5 PINTO E SILVA, Otavio. Subordinação, autonomia e parassubordinação nas relações de trabalho. Ed. LTr, São Paulo, 2004,p. 102            

6 FERRARO, Giuseppe. I contrati di laboro. Padova: CEDAM, 1991, p. 226,apud PINTO E SILVA, Otavio, idem.

7 PINTO E SILVA, Otavio. Obra citada. p .104.

8 MATTIA PERSIANI, Autonomia, subordinazione e coordinamento nei recenti modelli di colaborazione lavorativa, Il Diritto del Lavoro ̧Roma, v. 72, n. 4-5,p. 204,ligl-ott 199- apud PINTO E SILVA, Otavio. Obra citada, p. 104

9 idem        

 

Michel Olivier Giraudeau

Grünwald e Giraudeau Advogados Associados

www.ggadv.com.br

                                                          

                                                                                                                                                                                                                                                                            

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